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sexta-feira, 29 de julho de 2011

Ficha de aferição da leitura de A Odisseia (adaptação de João de Barros)

Minerva
Capítulos X a XV

Seleciona a opção correta:

1.    A quem Ulisses está a contar a sua triste história?
a.    A Minerva, deusa da sabedoria.
b.    A Menelau, marido da bela Helena.
c.    A Alcino, rei dos Feácios.

2.    Depois de enfrentarem as sereias e os monstros Cila e Caribdes, a que ilha aportaram Ulisses e os seus homens?
a.    À ilha do Vento.
b.    À ilha do Sol.
c.    À ilha do Mar.

3.    O Deus Apolo possuía muitos animais. De que espécies eram estes?
a.    Cabras e galinhas.
b.    Ovelhas e bois.
c.    Bois e carneiros.

4.    Que decidiu Ulisses fazer em relação ao conselho que a Circe lhe tinha dado de não aportar naquela ilha?
a.    Decidiu aceitá-lo e comunicou a sua decisão aos marinheiros.
b.    Optou por não ouvir o que a Circe lhe dissera.
c.    Decidiu parar apenas para procurar água.

5.    Como reagiram os marinheiros à decisão de Ulisses?
a.    Concordaram de imediato.
b.    Acharam que não deviam acreditar na Circe.
c.    Reagiram mal pois estavam exaustos e queriam descansar da viagem.

6.    Na primeira noite naquela ilha foram surpreendidos por uma tremenda borrasca que durou
a.    uma semana.
b.    duas semanas.
c.    um mês.

7.    Como os marinheiros mataram alguns animais para comer, Apolo castigou-os. Como?
a.    Enviou um gigante horrível.
b.    Com um tremor de terra.
c.    Causou uma terrível tempestade.

8.    Apenas Ulisses sobreviveu a mais uma catástrofe? Como?
a.    Agarrou-se ao mastro do navio.
b.    Escondeu-se numa gruta.
c.    Subiu para uma árvore.

9.    Quantos dias vogou Ulisses sozinho no mar?
a.    7.
b.    9.
c.    11.

10.  Finalmente, chegou à ilha de Calipso. Qual era o seu nome?
a.    Creta.
b.    Ogígia.
c.    Eólia.

11.  O rei dos Feácios cedeu um navio para levar Ulisses a Ítaca. O que aconteceu ao navio que o deixou na sua pátria?
a.    O deus Apolo enviou uma chuva de meteoritos que o afundou.
b.    O deus Hades provocou um nevoeiro intenso e perdeu-se.
c.    O deus Neptuno transformou o barco em pedra.

12.  Quantas vítimas mortais resultaram deste castigo divino?
a.    Nenhuma, pois estavam perto da sua ilha quando tal aconteceu.
b.    Vinte homens faleceram.
c.    Morreram todos os marinheiros.

13.  Estando Ulisses na sua pátria, para que não o reconhecessem, que fez Minerva?
a.    Fez cair a noite.
b.    Cobriu-o com uma espessa nuvem.
c.    Causou cegueira temporária aos habitantes da ilha.

14.  Minerva apareceu a Ulisses com que forma?
a.    Como um porqueiro velho e sujo.
b.    Como uma morena e alegre lavadeira.
c.    Como um belo e jovem pastor.

15.  Qual foi a primeira pessoa que Ulisses visitou?
a.    A sua velha aia.
b.    O seu guardador dos rebanhos.
c.    O responsável pelo olival.

16.  Como segurança, para que ninguém reconhecesse o rei regressado, Minerva transformou-o temporariamente em
a.    mendigo.
b.    rapariga.
c.    marinheiro.

17.  Depois de transformar Ulisses, Minerva
a.    foi pedir a Zeus que o ajudasse a matar os pretendentes.
b.    foi disfarçadamente até ao palácio avisar Penélope.
c.    dirigiu-se a Esparta para pedir a Telémaco que regressasse a casa.

18.  Depois de conversar com o seu próprio filho, Ulisses ficou a saber que, de entre os que ocupavam a sua casa, teria de matar
a.    cinquenta pessoas.
b.    cento e trinta pessoas.
c.    cento e setenta pessoas.

19.  Ao entrar no seu palácio, Ulisses foi de imediato reconhecido
a.    pelo seu cão.
b.    Por um dos pretendentes.
c.    por um velho criado.

20.  Ao ver o marido depois de tantos anos de ausência,
a.    Penélope não o reconheceu.
b.    Penélope chorou emocionada.
c.    Penélope disse-lhe que já tinha escolhido um dos pretendentes.

21.  Naquela altura, os viajantes eram bem tratados. Assim, Euricleia, ao lavar os pés de Ulisses, reconheceu-o
a.    pela voz.
b.    pelo andar.
c.    por uma cicatriz.

22.  Finalmente, Ulisses vingou-se dos pretendentes e apenas dois foram poupados. Quem?
a.    O poeta Fémio e o herói Medão.
b.    Menelau e Agamémnon.
c.    Heitor e Aquiles.

Correção do exercício:


1-c
2-b
3-c
4-a
5-c
6-c
7-c
8-a
9-b
10-b
11-c
12-a
13-b
14-c
15-b
16-a
17-c
18-b
19-a
20-a
21-c
22-a




quinta-feira, 21 de julho de 2011

O SUAVE MILAGRE - conto integral de Eça de Queirós

NESSE tempo Jesus ainda se não afastara da Galileia e das doces, luminosas margens do Lago de Tiberíades: – mas a nova dos seus milagres penetrara já até Enganin, cidade rica, de muralhas fortes, entre olivais e vinhedos, no país de Issacar.
Uma tarde um homem de olhos ardentes e deslumbrados passou no fresco vale, e anunciou que um novo Profeta, um Rabi formoso, percorria os campos e as aldeias da Galileia, predizendo a chegada do reino de Deus, curando todos os males humanos. E enquanto descansava, sentado à beira da Fonte dos Vergéis, contou ainda que esse Rabi, na estrada de Magdala, sarara da lepra o servo dum Decurião Romano, só com estender sobre ele a sombra das suas mãos; e que noutra manhã, atravessando numa barca a terra dos Gerasenos, onde começava a colheita do bálsamo, ressuscitara a filha de Jairo, homem considerável e douto que comentava os Livros na Sinagoga. E como em redor, assombrados, seareiros, pastores e as mulheres trigueiras com a bilha no ombro lhe perguntassem se esse era, em verdade, o Messias de Judeia, e se diante dele refulgia a espada de fogo, e se o ladeavam, caminhando como as sombras de duas torres, as sombras de Gog e de Magog – o homem, sem mesmo beber daquela água tão fria de que bebera Josué, apanhou o cajado, sacudiu os cabelos e meteu pensativamente por sob o Aqueduto, logo sumido na espessura das amendoeiras em flor. Mas uma esperança, deliciosa como o orvalho nos meses em que canta a cigarra, refrescou as almas simples: logo, por toda a campina que verdeja até Áscalon, o arado pareceu mais brando de enterrar, mais leve de mover a pedra do lagar: as crianças, colhendo ramos de anémonas, espreitavam pelos caminhos se além da esquina do muro, ou de sob o sicómoro, não surgiria uma claridade: e nos bancos de pedra, às portas da cidade, os velhos, correndo os dedos pelos fios das barbas, já não desenrolavam, com tão sapiente certeza, os ditames antigos.
Ora então vivia em Enganim um velho, por nome Obed, duma família pontifical de Samaria, que sacrificara nas aras do Monte Ebal, senhor de fartos rebanhos e de fartas vinhas – e com o coração tão cheio de orgulho como o seu celeiro de trigo. Mas um vento árido e abrasado, esse vento de desolação que ao mando do Senhor sopra das torvas terras de Assur, matara as reses mais gordas das suas manadas, e pelas encostas onde as suas vinhas se enroscavam ao olmo, e se estiravam na latada airosa, só deixara, em torno dos olmos e pilares despidos, sarmentos, cepas mirradas e a parra roída de crespa ferrugem. E Obed, agachado à soleira da sua porta, com a ponta do manto sobre a face, palpava a poeira, lamentava a velhice, ruminava queixumes contra Deus cruel.
Apenas ouvira falar desse novo Rabi da Galileia, que alimentava as multidões, amedrontava os demónios, emendava todas as desventuras – Obed, homem lido, que viajara na Fenícia, logo pensou que Jesus seria um desses feiticeiros, tão costumados na Palestina, como Apolónio, ou Rabi Ben-Dossa, ou Simão, o Subtil. Esses, mesmo nas noites tenebrosas, conversam com as estrelas, para eles sempre claras e fáceis nos seus segredos: com uma vara afugentam de sobre as searas os moscardos gerados nos lodos do Egipto: e agarram entre os dedos as sombras das árvores, que conduzem, como toldos benéficos, para cima das eiras, à hora da sesta. Jesus da Galileia, mais novo, com magias mais viçosas decerto, se ele largamente o pagasse, sustaria a mortandade dos seus gados, reverdeceria os seus vinhedos. Então Obed ordenou aos seus servos que partissem, procurassem por toda a Galileia o Rabi novo, e com promessa de dinheiros ou alfaias o trouxessem a Enganim, no país de Issacar.
Os servos apertaram os cinturões de couro – e largaram pela estrada das Caravanas, que, costeando o Lago, se estende até Damasco. Uma tarde, avistaram sobre o poente, vermelho como uma romã muito madura, as neves finas do monte Hermon. Depois, na frescura duma manhã macia, o Lago de Tiberíade resplandeceu diante deles, transparente, coberto de silêncio, mais azul que o céu, todo orlado de prados floridos, de densos vergéis, de rochas de pórfiro e de alvos terraços por entre os palmares, sob o voo das rolas. Um pescador que desamarrava preguiçosamente a sua barca duma ponta de relva, assombreada de aloendros, escutou, sorrindo, os servos. O Rabi de Nazaré? Oh! desde o mês de Ijar, o Rabi descera, com os seus discípulos, para os lados para onde o Jordão leva as águas.
Os servos, correndo, seguiram pelas margens do rio, até adiante do vau, onde ele se estira num largo remanso, e descansa, e um instante dorme, imóvel e verde, à sombra dos tamarindos. Um homem da tribo dos Essénios, todo vestido de linho branco, apanhava lentamente ervas salutares, pela beira da água, com um cordeirinho branco ao colo. Os servos humildemente saudaram-no, porque o povo ama aqueles homens de coração tão limpo, e claro, e cândido como as suas vestes cada manhã lavadas em tanques purificados. E sabia ele da passagem do novo Rabi da Galileia que, como os Essénios, ensinava a a doçura, e curava as gentes e os gados? O Essénio murmurou que o Rabi atravessara o Oásis de Engaddi, depois se adiantara para além... – Mas onde, “além”? – Movendo um ramo de flores roxas que colhera, o Essénio mostrou as terras de Além-Jordão, a planície de Moab. Os servos vadearam o rio – e debalde procuraram Jesus, arquejando pelos rudes trilhos, até às fragas onde se ergue a cidadela sinistra de Makaur... No Poço de Yakob repousava uma larga caravana, que conduzia para o Egipto mirra, especiarias e bálsamos de Gilead: e os cameleiros, tirando a água com os baldes de couro, contaram aos servos de Obed que em Gadara, pela Lua-nova, um Rabi maravilhoso, maior que David ou Isaías, arrancara sete demónios do peito duma tecedeira, e que, à sua voz, um homem degolado pelo salteador Barrabás se erguera da sua sepultura e recolhera ao seu horto. Os servos, esperançados, subiram logo açodadamente pelo caminho dos Peregrinos até Gadara, cidade de altas torres, e ainda mais longe até às Nascentes de Amalha... Mas Jesus, nessa madrugada, seguido por um povo que cantava e sacudias ramos de mimosas, embarcara no Lago num batel de pesca, e à vela navegara para Magdala. E os servos de Obed, descoroçoados, de novo passaram o Jordão na Ponte das Filhas de Jacob. Um dia, já com as sandálias rotas dos longos caminhos, pisando já as terras da Judeia Romana, cruzaram um Fariseu sombrio, que recolhia a Efraim, montado na sua mula. Com devota reverência detiveram o homem da Lei. Encontrara ele, por acaso, esse Profeta novo da Galileia que, como um Deus passeando na terra, semeava milagres? A adunca face do Fariseu escureceu enrugada – e a sua cólera retumbou como um tambor orgulhoso:
–Oh escravos pagãos! Oh blasfemos! Onde ouvistes que existissem profetas ou milagres fora de Jerusalém! Só Jeová tem força no seu Templo. De Galileia surdem os néscios e os impostores...
E como os servos recuaram ante o seu punho erguido, todo enrodilhado de dísticos sagrados – o furioso Doutor saltou da mula e, com as pedras da estrada, apedrejou os servos de Obed, uivando: Racca! Racca! e todos os anátemas rituais. Os servos fugiram para Enganim. E grande foi a desconsolação de Obed, porque os seus gados morriam, as suas vinhas secavam, – e todavia, radiantemente,, como uma alvorada por detrás de serras, crescia, consoladora e cheia de promessas divinas, a fama de Jesus da Galileia.
Por esse tempo, um Centurião Romano, Públio Sétimo, comandava o forte que domina o vale de Cesareia, até à cidade e ao mar. Públio, homem áspero, veterano da campanha de Tibério contra os Partas, enriquecera durante a revolta de Samaria com presas e saques, possuía minas na Ática, e gozava, como favor supremo dos Deuses, a amizade de Flaco, Legado Imperial da Síria. Mas uma dor roía a sua prosperidade muito poderosa, como um verme rói um fruto muito suculento. Sua filha única, para ele mais amada que vida e bens, definhava com um mal subtil e lento, estranho mesmo ao saber dos esculápios e mágicos que ele mandara consultar a Sídon e a Tiro. Branca e triste como a Lua num cemitério, sem um queixume, sorrindo pàlidamente a seu pai, definhava, sentada na alta esplanada do forte, sob um velário, alongando saudosamente os negros olhos tristes pelo azul do mar de Tiro, por onde ela navegara de Itália, numa opulenta galera. Ao seu lado, por vezes, um legionário, entre as ameias, apontava vagarosamente ao alto a flecha, e varava uma grande águia, voando de asa serena, no céu rutilante. A filha de Sétimo seguia um momento a ave, torneando até bater morta sobre as rochas: – depois, com um suspiro, mais triste e mais pálida, recomeçava a olhar para o mar.
Então Sétimo, ouvindo contar, a mercadores de Chorazim, deste Rabi admirável, tão potente sobre os Espíritos que sarava os males tenebrosos da alma, destacou três decúrias de soldados para que o procurassem pela Galileia, e por todas as cidades da Decápola, até à costa e até Áscalon. Os soldados enfiaram os escudos nos sacos de lona, espetaram nos elmos ramos de oliveira – e as suas sandálias ferradas apressadamente se afastaram, ressoando sobre as lajes de basalto da estrada romana, que desde Cesareia até ao Lago corta toda a Tetráquia de Herodes. As suas armas, de noite, brilhavam no topo das colinas, por entre a chama ondeante dos archotes erguidos. De dia invadiam os casais, rebuscavam a espessura dos pomares, esfuracavam com a ponta das lanças a palha das medas: e as mulheres, assustadas, para os amansar, logo acudiam com bolos de mel, figos novos e malgas cheias de vinho, que eles bebiam dum trago, sentados à sombra dos sicómoros. Assim correram a Baixa Galileia – e, do Rabi, só encontraram o sulco luminoso nos corações. Enfastiados com as inúteis marchas, desconfiando que os Judeus sonegassem o seu feiticeiro para que Romanos não aproveitassem do superior feitiço, derramavam com tumulto a sua cólera, através da piedosa terra submissa. À entrada das pontes detinham os peregrinos, gritando o nome do Rabi, rasgando os véus às virgens: e, à hora em que os cântaros se enchem nas cisternas, invadiam as ruas estreitas dos burgos, penetravam nas Sinagogas e batiam sacrìlegamente com os punhos das espadas nas Thebahs, os Santos Armários de cedro que continham os Livros Sagrados. Nas cercanias de Hebron arrastaram os Solitários pelas barbas para fora das grutas para lhes arrancar o nome do deserto ou do palmar em que se ocultava o Rabi: – e dois mercadores Fenícios que vinham de Jope com uma carga de malóbatro, e a quem nunca chegara o nome de Jesus, pagaram por esse delito cem dramas a cada Decurião. Já a gente dos campos, mesmo os bravios pastores de Idumeia, que levam as reses brancas para o Templo, fugiam espavoridos para as serranias, apenas luziam, nalguma volta do caminho, as armas do bando violento. E da beira dos eirados, as velhas sacudiam como taleigos a ponta dos cabelos desgrenhados, e arrojavam sobre eles as Más Sortes, invocando a vingança de Elias. Assim tumultuosamente erraram até Áscalon: não encontraram Jesus: e retrocederam ao longo da costa, enterrando as sandálias nas areias ardentes.
Uma madrugada, perto de Cesareia, marchando num vale, avistaram sobre um outeiro um verde-negro bosque de loureiros, onde alvejava, recolhidamente, o fino e claro pórtico dum templo. Um velho, de compridas barbas brancas, coroado de folhas de louro, vestido com uma túnica cor de açafrão, segurando uma curta lira de três cordas, esperava gravemente, sobre os degraus de mármore, a aparição do Sol. Debaixo, agitando um ramo de oliveira, os soldados bradaram pelo Sacerdote. Conhecia ele um novo Profeta que surgira na Galileia, e tão destro em milagres que ressuscitava os mortos e mudava a água em vinho? Serenamente, alargando os braços, o sereno velho exclamou por sobre a rociada verdura do vale:
– Oh romanos! pois acreditais que em Galileia ou Judeia apareçam profetas consumando milagres? Como pode um bárbaro alterar a Ordem instituída por Zeus?... Mágicos e feiticeiros são vendilhões, que murmuram palavras ocas, para arrebatar a espórtula dos simples... Sem a permissão dos Imortais nem um galho seco pode tombar da árvore, nem seca folha pode ser sacudida na árvore. Não há profetas, não há milagres... Só Apolo Délfico conhece o segredo das coisas!
Então, devagar, com a cabeça derrubada, como numa tarde de derrota, os soldados recolheram à fortaleza de Cesareia. E grande foi o desespero de Sétimo, porque sua filha morria, sem um queixume, olhando o mar de Tiro – e todavia a fama de Jesus, curador dos lânguidos males, crescia, sempre mais consoladora e fresca, como a aragem da tarde que sopra do Hermon e, através dos hortos, reanima e levanta as açucenas pendidas.
Ora entre Enganim e Cesareia, num casebre desgarrado, sumido na prega dum cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel. O seu filhinho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o criara para os farrapos da enxerga apodrecida, onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo. Também a ela a doença a engelhara dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida que uma cepa arrancada. E, sobre ambos, espessamente a miséria cresceu como o bolor sobre cacos perdidos num ermo. Até na lâmpada de barro vermelho, secara há muito o azeite. Dentro da arca pintada não restava grão ou côdea. No Estio, sem pasto, a cabra morrera. Depois, no quinteiro, secara a figueira. Tão longe do povoado, nunca esmola de pão ou mel entrava o portal. E só ervas apanhadas nas fendas das rochas, cozidas sem sal, nutriam aquelas criaturas de Deus na Terra Escolhida, onde até às aves maléficas sobrava o sustento!
Um dia um mendigo entrou no casebre, repartiu o seu farnel com a mãe amargurada, e um momento sentado na pedra da lareira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse Rabi que aparecera na Galileia, e de um pão no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e luminoso Reino, de abundancia maior que a Corte de Salomão. A mulher escutava, com olhos famintos. E esse doce Rabi, esperança dos tristes, onde se encontrava? O mendigo suspirou. Ah, esse doce Rabi! quantos o desejavam, que se desperançavam! A sua fama andava por sobre toda a Judeia, como o sol que até por qualquer velho muro se estende e se goza; mas para enxergar a claridade do seu rosto, só aqueles ditosos que o seu desejo escolhia. Obed, tão rico, mandara os seus servos por toda a Galileia para que procurassem Jesus, o chamassem com promessas a Enganim; Sétimo, tão soberano, destacara os seus soldados até à costa do mar, para que buscassem Jesus, o conduzissem, por seu mando, a Cesareia. Errando, esmolando por tantas estradas, ele topara os servos de Obed, depois os legionários de Sétimo. E todos voltavam, como derrotados, com as sandálias rotas, sem ter descoberto em que mata ou cidade, em que toca ou palácio, se escondia Jesus.
A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha. A mãe retomou o seu canto, mais vergada, mais abandonada. E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o roças de uma asa, pediu à mãe que lhe trouxesse esse Rabi, que amava as criancinhas ainda as mais pobres, sarava os males ainda os mais antigos. A mãe apertou a cabeça esguedelhada:
– Oh filho! e como queres que te deixe, e me meta aos caminhos, à procura do Rabi da Galileia? Obed é rico, e tem servos, e debalde buscaram Jesus, por areais e colinas, desde Chorazim até ao país de Moab. Sétimo é forte, e tem soldados, e debalde correram por Jesus, desde o Hebron até ao mar! Como queres que te deixe? Jesus anda por muito longe e a nossa dor mora conosco, dentro destas paredes, e dentro delas nos prende. E mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o Rabi tão desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que descesse através das cidades até este ermo, para sarar um entrevadinho tão pobre, sobre enxerga tão rota?
A criança, com duas longas lagrimas na face magrinha, murmurou:
– Oh mãe! Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno, e com um mal tão pesado, e que tanto queria sarar!
E a mãe, em soluços:
– Oh meu filho, como te posso deixar? Longas são as estradas da Galileia, e curta a piedade dos homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do doce Rabi. Oh filho! talvez Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O Céu o trouxe, o Céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes.
De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou:
– Mãe, eu queria ver Jesus...
E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança:
– Aqui estou.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Uma fábula do Benim



A faraona[1] e a formiga        
         Eis mais uma história que aconteceu no tempo em que os animais falavam. Um belo dia, ao nascer do Sol, a faraona foi passear até às margens do rio da aldeia. Aproximou-se da água para beber. De repente viu uma pequena formiga que, um pouco afastada da margem, se debatia contra a força da corrente. Agarrada a um pequeno ramo de árvore, fazia tudo paras e manter ao de cima e não ser levada pelas águas.
         — Socorro! Socorro! — gritava a formiga.
         A faraona, de imediato, foi em seu socorro: pegou num ramo e lançou-lho.
         A pequena formiga agarrou-se ao ramo até sair das águas. Depois apegou-se à terra da margem e subiu para fora do rio. Já fora da margem, quando se encontrava na terra firme, cheia de gratidão agradeceu à faraona o tê-la salvo. Depois, cada uma seguiu o seu caminho.
         As noites sucederam-se aos dias e os dias às noites. Passou mesmo muito tempo. Até que um dia apareceu um caçador a deambular por aquelas paragens, à espera dos animais que vinham beber ao rio. De longe, o caçador viu a faraona que se passeava na margem do rio. Com movimentos lentos para não se fazer notar e espantar a caça, o homem levantou o arco, tirou uma flecha da aljava e preparava-se para alvejar a faraona.
         Foi então que a pequena formiga, que se encontrava na erva e tinha reparado no caçador que punha a sua flecha no arco, se precipitou sobre ele: subiu-lhe pelo pé e mordeu-lhe a barriga da perna com quanta força tinha.
         Fulminado pela dor, o caçador repentinamente voltou-se para se defender da mordedura. Ao fazê-lo, provocou um ruído seco e suspeito, que chegou aos ouvidos da faraona. Esta, ao pressentir o perigo, num abrir e fechar de olhos levantou voo e escapou a grandes golpes de asas. Ela nunca chegou a sabê-lo: mas teve a sua vida salva graças à intervenção da pequena formiga.
         É por isso que os anciãos dizem que na vida, com muita frequência, não são só os pequenos que têm necessidade dos grandes, mas também os grandes que, muitas vezes sem o saberem, têm necessidade da ajuda dos pequenos. Dizem, sobretudo, que as boas ações nunca se perdem.


[1] Galinha-da-guiné