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sábado, 13 de agosto de 2011

Mais um conto do grande Eça

UM POETA LÍRICO

AQUI está, simplesmente, sem frases e sem ornatos, a história triste do poeta Korriscosso. De todos os poetas líricos de que tenho notícia, é este, certamente, o mais infeliz. Conheci-o em Londres, no hotel de Charing-Cross, uma madrugada regelada de Dezembro. Tinha eu chegado ao continente, prostrado por duas horas de Canal da Mancha... Ah! Que mar! E era só uma brisa fresca de Noroeste: mas ali, no tombadilho, sob uma capa de oleado de que um marujo me tinha coberto, como se cobre um corpo morto, fustigado da neve e da vaga, oprimido por aquela treva tumultuosa que o paquete ia rompendo aos roncos e aos encontrões – parecia-me um tufão dos mares da China...
Apenas entrei no hotel, gelado e estremunhado, corri ao vasto fogão do peristilo, e ali fiquei, saturando-me daquela paz quente em que a sala estava adormecida, com os olhos beatamente postos na boa brasa escarlate... E foi então que vi aquela figura esguia e longa, já de casaca e gravata branca, que do outro lado da chaminé, de pé, com a taciturna tristeza duma cegonha que cisma, olhava também os carvões ardentes, com um guardanapo no braço. Mas o porteiro tinha rolado a minha bagagem, e eu fui inscrever-me ao bureau. A guarda-livros, tesa e loura, com um perfil antiquado de medalha safada, pousou o seu crochê ao lado da sua chávena de chá, acariciou com um gosto doce os dois bandós louros, assentou corretamente o meu nome, de dedinho no ar, fazendo rebrilhar um diamante, e eu ia subir a vasta escadaria, – quando a figura magra e fatal se dobrou num ângulo, e murmurou-me num inglês silabado:
– Já está servido o almoço das sete...
Mas eu não queria o almoço das sete. Fui dormir.
Mais tarde, já repousado, fresco do banho, quando desci ao restaurante para o lunch, avistei logo, plantado melancolicamente ao pé da larga janela, o indivíduo esguio e triste. A sala estava deserta numa luz parda: os fogões flamejavam; e fora, no silêncio do domingo, nas ruas mudas, a neve caía sem cessar dum céu amarelento e baço. Eu via apenas as costas do homem; mas havia na sua linha magra e um pouco dobrada uma expressão tão evidente de desalento, que me interessei por aquela figura. O cabelo comprido, de tenor, caído sobre a gola da casaca, era, manifestamente, dum meridional; e toda a sua magreza friorenta se encolhia ao aspecto daqueles telhados cobertos de neve, na sensação daquele silêncio lívido... Chamei-o. Quando ele se voltou, a sua fisionomia, que apenas entrevira na véspera, impressionou-me: era um carão longo e triste, muito moreno, de nariz judaico e uma barba curta e frisada de Cristo em estampa romântica; a testa era destas que, em boa literatura, se chama, creio eu, fronte: era larga e era lustrosa. Tinha o olhar encovado e vago, com uma indecisão de sonho nadando num fluido enternecido... E que magreza! Quando andava, a calça curta torcia-se em torno da canela como pregas de bandeira em torno dum mastro: a casaca tinha dobras de túnica ampla; as duas abas compridas e agudas eram desgraçadamente grotescas. Recebeu a ordem do meu almoço, sem me olhar, num tédio resignado: arrastou-se para o comptoir onde o maître d’hotel lia a Bíblia, passou a mão pela testa com um gesto errante e dolente, e disse-lhe numa voz surda:
– Número 307. Duas costeletas. Chá...
O maître d’hotel afastou a Bíblia, inscreveu o menu – e eu acomodei-me à mesa, e abri o volume de Tennyson que trouxera para almoçar comigo – porque, creio que lhes disse, era domingo, dia sem jornais e sem pão fresco. Fora continuava a nevar sobre a cidade muda. A uma mesa distante, um velho cor de tijolo e todo branco de cabelo e de suíças, que acabara de almoçar, dormitava de mãos no ventre, boca aberta e luneta na ponta do nariz. E o único som vinha da rua, uma voz gemente que a neve abafava mais, uma voz pedinte que à esquina defronte garganteava um salmo... Um domingo de Londres.
Foi o magro que me trouxe o almoço – e apenas ele se aproximou, com o serviço do chá, eu senti logo que aquele volume de Tennyson nas minhas mãos o tinha interessado e impressionado; foi um olhar rápido, gulosamente fixado na página aberta, um estremecimento quase imperceptível – emoção fugitiva, decerto, porque depois de ter pousado o serviço, rodou sobre os calcanhares e foi plantar-se, melancòlicamente, à janela, de olho triste e posto na neve triste. Eu atribuí aquele movimento curioso ao esplendor da encadernação do volume, que eram os Idílios de El-Rei, em marroquim negro, com o escudo de armas de Lançarote do Lago – o pelicano de ouro sobre um mar de sinopla.
Nessa noite parti no expresso para a Escócia, e ainda não tinha passado Iorque, adormecida na sua gravidade episcopal, já me esquecera o criado romanesco do restaurante de Charing-Cross. Foi só daí a um mês, ao voltar a Londres, que entrando no restaurante, e revendo aquela figura lenta e fatal atravessar com um prato de rosbife numa das mãos e na outra um pudim de batata, senti renascer o antigo interesse. E nessa noite mesmo tive a singular felicidade de saber o seu nome e de entrever um fragmento do seu passado. Era já tarde e eu voltava do Covent-Garden, quando no peristilo do hotel encontrei, majestoso e próspero, o meu amigo Bracolletti.
Não conhecem Bracolletti? A sua presença é formidável; tem a amplidão pançuda, o negro cerrado da barba, a lentidão, o cerimonial dum paxá gordo. Mas esta ponderosa gravidade turca é temperada, em Bracolletti, pelo sorriso e pelo olhar. Que olhar! Um olhar doce, que me faz lembrar o dos animais da Síria: é o mesmo enternecimento. Parece errar no seu fluido macio a religiosidade meiga das raças que dão os Messias... Mas o sorriso! O sorriso de Bracolletti é a mais completa, a mais perfeita, a mais rica das expressões humanas; há finura, inocência, bonomia, abandono, ironia doce, persuasão, naqueles dois lábios que se descerram e que deixam brilhar um esmalte de dentes de virgem!... Ah! Mas também este sorriso é a fortuna de Bracolletti.
Moralmente, Bracolletti é um hábil. Nasceu em Esmirna de pais gregos; é tudo o que ele revela: de resto, quando se lhe pergunta pelo seu passado, o bom grego rola um momento a cabeça de ombro a ombro, esconde sob as pálpebras cerradas com bonomia o seu olho maometano, desabrocha o sorriso duma doçura de tentar abelhas, e murmura, como afogado em bondade e em enternecimento:
–Eh! mon Dieu! Eh! mon Dieu…
Nada mais. Parece, porém, que viajou – porque conhece o Peru, a Criméia, o Cabo da Boa Esperança, os países exóticos – tão bem como Regent-Street: mas é evidente para todos que a sua existência não foi tecida, como a dos vulgares aventureiros do Levante, de ouro e estopa, de esplendores e pelintrices: é um gordo e, portanto, um prudente: o seu magnífico solitário nunca deixou de lhe brilhar no dedo: nenhum frio jamais o surpreendeu sem uma peliça de dois mil francos: e nunca deixa de ganhar, todas as semanas, no Fraternal Clube, de que é um membro querido, dez libras ao whist. É um forte.
Mas tem uma debilidade. É singularmente guloso de rapariguinhas de doze a catorze anos: gosta delas magrinhas, muito louras, e com o hábito de praguejar. Coleciona-as pelos bairros pobres de Londres, com método. Instala-as em casa, e ali as tem, como passarinhos na gaiola, metendo-lhes a papinha no bico, ouvindo-as palrar todo baboso, animando-as a que lhe roubem os xelins da algibeira, gozando o desenvolvimento dos vícios naquelas flores da lama de Londres, pondo-lhes ao alcance as garrafas de gin para que os anjinhos se embebedem; – e quando alguma, excitada de álcool, de cabelo ao vento e face acesa, o injuria, o arrepela, baba obscenidades – o bom Bracolletti, encruzado no sofá, de mãos beatamente cruzadas na pança, o olhar afogado em êxtase, murmura no seu italiano da costa Síria:
– Piccolina! Gentilletta!
Querido Bracolletti! Foi, realmente, com prazer que o abracei, nessa noite, em Charing-Cross: e como nos não víamos há muito, fomos cear juntos ao restaurante. O criado triste lá estava no seu comptoir, curvado sobre o Journal des Débats. E apenas Bracolletti apareceu, na sua majestade de obeso, o homem estendeu-lhe silenciosamente a mão; foi um shake-hands solene, enternecido e sincero.
Bom Deus, eram amigos! Arrebatei Bracolletti para o fundo da sala, e vibrando de curiosidade, interroguei-o com sofreguidão. Quis primeiro o nome do homem.
– Chama-se Korriscosso – disse-me Bracolletti, grave.
Quis depois a sua história. Mas Bracolletti, como os deuses da Ática que, nos seus embaraços no mundo, se recolhiam à sua nuvem, Bracolletti refugiou-se na sua vaga reticência.
–Eh! mon Dieu!... Eh! mon Dieu!…
– Não, não, Bracolletti. Vejamos. Quero-lhe a história... Aquela face fatal e byroniana deve ter uma história...
Bracolletti então tomou todo o ar cândido que lhe permitem a sua pança e as suas barbas – e confessou-me, deixando cair as frases às gotas, que tinham viajado ambos na Bulgária e no Montenegro... Korriscosso foi seu secretário... Boa letra... Tempos difíceis... Eh! mon Dieu!...
– De onde é ele?
Bracolletti respondeu sem hesitar, baixando a voz, com um gesto repassado de desconsideração:
– É um grego de Atenas.
O meu interesse sumiu-se como a água que a areia absorve. Quando se tem viajado no Oriente e nas escalas do Levante, adquire-se fàcilmente o hábito, talvez injusto, de suspeitar do grego: aos primeiros que se vêem, sobretudo tendo uma educação universitária e clássica, o entusiasmo acende-se um pouco, pensa-se em Alcibíades e em Platão, nas glórias duma raça estética e livre, e perfilam-se na imaginação as linhas augustas do Pártenon. Mas, depois de os ter freqüentado, às mesas redondas e nos tombadilhos das Messageries, e principalmente depois de ter escutado a lenda de velhacaria que eles têm deixado desde Esmirna até Túnis, os outros que se vêem provocam, apenas, estes movimentos: abotoar rapidamente o casaco, cruzar fortemente os braços sobre a cadeia do relógio e aguçar o intelecto para rechaçar a escroquerie. A causa desta reputação funesta é que a gente grega, que emigra para as escalas do Levante, é uma plebe torpe, parte pirata e parte lacaia, bando de rapina astuto e perverso. A verdade é que, apenas soube Korriscosso um grego, lembrei-me logo que o meu belo volume de Tennyson, na minha última estada em Charing-Cross, me desaparecera do quarto, e recordei o olhar de gula e de presa que cravara nele Korriskosso... Era um bandido!
E durante a ceia não falamos mais de Korriscosso. Serviu-nos outro criado, rubro, honesto e são. O lúgubre Korriscosso não se afastou do comptoir, abismado no Journal des Débats.
Nessa noite aconteceu, ao recolher-me ao meu quarto, que me perdi... O hotel estava atulhado, e eu tinha sido alojado naqueles altos de Charing-Cross, numa complicação de corredores, escadas, recantos, ângulos, onde é quase necessário roteiro e bússola.
De castiçal na mão, penetrei num passadiço onde corria um bafo morno de viela mal arejada. As portas aí não tinham números, mas pequenos cartões colados onde estavam inscritos nomes: John, Smith, Charlie, Willie... Enfim, eram evidentemente as habitações dos criados. De uma porta aberta saía a claridade de um bico de gás; adiantei-me, e vi logo Korriscosso, ainda de casaca, sentado a uma mesa alastrada de papéis, de testa pendida sobre a mão, escrevendo.
– Pode-me indicar o caminho para o número 508?
Ele ergueu para mim um olhar estremunhado e enevoado; parecia ressurgir de muito longe, de um outro universo; batia as pálpebras, repetindo:
– 508? 508?...
Foi então que eu avistei, sobre a mesa, entre papéis, colarinhos sujos e um rosário – o meu volume de Tennyson! Ele viu o meu olhar, o bandido! e acusou-se todo numa vermelhidão que lhe inundou a face chupada. O meu primeiro movimento foi não reconhecer o livro: como era um movimento bom, e obedecendo logo à moral superior do mestre Talleyrand, reprimi-o; apontando o volume com um dedo severo, um dedo de Providência irritada, disse-lhe:
– É o meu Tennyson...
Não sei que resposta ele tartamudeou, porque eu, apiedado, retomado também pelo interesse que me dava aquela figura picaresca de grego sentimental, acrescentei num tom repassado de perdão e de justificação:
– Grande poeta, não é verdade? Que lhe pareceu? Tenho a certeza que se entusiasmou...
Korriscosso corou mais: mas não era o despeito humilhado do salteador surpreendido: era, julguei eu, a vergonha de ver a sua inteligência, o seu gosto poético adivinhados – e de ter no corpo a casaca coçada de criado de restaurante. Não respondeu. Mas as páginas do volume, que eu abri, responderam por ele; a brancura das margens largas desaparecia sob uma rede de comentários a lápis: Sublime! Grandioso! Divino! – palavras lançadas numa letra convulsiva, num tremor de mão, agitada por uma sensibilidade vibrante...
No entanto Korriscosso permanecia de pé, respeitoso, culpado, de cabeça baixa, com o laço da gravata branca fugindo para o cachaço. Pobre Korriscosso! Compadeci-me daquela atitude, revelando todo um passado sem sorte, tantas tristezas de dependência... Lembrei-me que nada impressiona o homem do Levante, como um gesto de drama e de palco; estendi-lhe ambas as mãos num movimento à Talma, e disse-lhe:
– Eu também sou poeta!...
Esta frase extraordinária pareceria grotesca e impudente a um homem do Norte; o levantino viu logo nela a expansão de uma alma irmã. Porque, não lhes disse? o que Korriscosso estava escrevendo, numa tira de papel, eram estrofes: era uma ode.
Daí a pouco, com a porta fechada, Korriscosso contava-me a sua história – ou antes fragmentos, anedotas desirmanadas da sua biografia. É tão triste, que a condenso. De resto, havia na sua narração lacunas de anos; – e eu não posso reconstituir com lógica e seqüência a história deste sentimental. Tudo é vago e suspeito. Nasceu com efeito em Atenas; seu pai parece que era carregador no Pireu. Aos 18 anos, Korriscosso servia de criado a um médico, e nos intervalos do serviço frequentava a Universidade de Atenas; estas coisas são frequentes là-bas, como ele dizia. Formou-se em leis: isto habilitou-o, mais tarde, em tempos difíceis, a ser um intérprete de hotel. Desse tempo datam as suas primeiras elegias num semanário lírico, intitulado Ecos da Ática. A literatura levou-o diretamente à política e às ambições parlamentares. Uma paixão, uma crise patética, um marido brutal, ameaças de morte, forçam-no a expatriar-se. Viajou na Bulgária, foi em Salonica empregado numa sucursal do Banco Otomano, remeteu endechas dolorosas a um jornal da província – a Trombeta da Argólida. Aqui há uma dessas lacunas, um buraco negro na sua história. Reaparece em Atenas, com fato novo, liberal e deputado.
Este período de sua glória foi breve, mas suficiente para o pôr em evidência; a sua palavra colorida, poética, recamada de imagens engenhosas e lustrosas, encantou Atenas: tinha o segredo de florir, como ele dizia, os terrenos mais áridos; duma discussão de imposto ou de viação fazia saltar éclogas de Teócrito. Em Atenas este talento leva ao poder: Korriscosso era indicado para gerir uma alta administração do Estado: o ministério, porém, e com ele a maioria de que Korriscosso era o tenor querido, caíram, sumiram-se, sem lógica constitucional, num destes súbitos desabamentos políticos tão comuns na Grécia, em que os governos se aluem, como as casas em Atenas – sem motivo. Falta de base, decrepitude de materiais e de individualidades... Tudo tende para o pó num solo de ruínas...
Nova lacuna, novo mergulho obscuro na história de Korriscosso…
Volta à superfície; membro de um clube republicano de Atenas, pede num jornal a emancipação da Polônia, e a Grécia governada por um concílio de gênios. Publica então os seus Suspiros da Trácia. Tem outro romance de coração... E enfim – e isto disse-mo, sem explicações, – é obrigado a refugiar-se em Inglaterra. Depois de tentar em Londres várias posições, coloca-se no restaurante de Charing-Cross.
– É um porto de abrigo – disse-lhe eu, apertando-lhe a mão.
Ele sorriu com amargura. Era decerto um porto de abrigo, e vantajoso. É bem alimentado; as gorjetas são razoáveis; tem um velho colchão de molas, – mas as delicadezas da sua alma são, a todo o momento, dolorosamente feridas...
Dias atribulados, dias crucificados, os daquele poeta lírico, forçado a distribuir numa sala, a burgueses estabelecidos e glutões, costeletas e copos de cerveja! Não é a dependência que o aflige; a sua alma de grego não é particularmente ávida de liberdade, basta-lhe que o patrão seja cortês. E, como ele me disse, é-lhe grato reconhecer que os fregueses de Charing-Cross nunca lhe pedem a mostarda ou o queijo sem dizer if you please; e quando saem, ao passar por ele, levam dois dedos à aba do chapéu: isto satisfaz a dignidade de Korriscosso.
Mas o que o tortura é o contato constante com o alimento. Se ele fosse um guarda-livros dum banqueiro, primeiro caixeiro dum armazém de sedas... Nisso há uma sobra de poesia – os milhões que se revolvem, as frotas mercantes, a brutal força do ouro, ou então dispor ricamente os estofos, os cortes de seda, fazer correr a luz nas ondulações dos moirés, dar ao veludo as molezas da linha e da prega... Mas num restaurante como se pode exercer o gosto, a originalidade artística, o instinto da cor, do efeito, do drama – a partir nacos de rosbife ou de presunto de Iorque?!... Depois, como ele disse, dar a comer, fornecer alimento, é servir exclusivamente a pança, a tripa, a baixa necessidade material: no restaurante, o ventre é Deus: a alma fica fora, com o chapéu que se pendura no cabide ou com o rolo de jornais que se deixou no bolso do paletó.
E as convivências, e a falta de conversação! Nunca se voltarem para ele senão para lhe pedirem salame ou sardinhas de Nantes! Nunca abrir os seus lábios, de onde pendia o parlamento de Atenas, senão para perguntar: – Mais pão? Mais bife? – Esta privação de eloquência é-lhe dolorosa.
Além disso o serviço impede-lhe o trabalho. Korriscosso compõe de memória; quatro passeios pelo quarto, um repelão ao cabelo, e a ode sai-lhe harmoniosa e doce... Mas a interrupção glutona da voz do freguês, pedindo nutrição, é fatal a esta maneira de trabalhar. Às vezes, encostado a uma janela, de guardanapo no braço, Korriscosso está fazendo uma elegia; são tudo luares, roupagens alvas de virgens pálidas, horizontes celestes, flores de alma dolorida... É feliz; está remontando aos céus poéticos, nas planícies azuladas onde os sonhos acampam, galopando de estrela em estrela... De repente, uma grossa voz faminta berra de um canto:
– Bife e batatas!
Ai! As aladas fantasias batem o vôo como pombas espavoridas! E aí vem o infeliz Korriscosso, precipitado dos cimos ideais, de ombros vergados e as abas da casaca baloiçando, perguntar com o sorriso lívido:
– Passado ou meio cru?
Ah! É um amargo destino!
– Mas – perguntei-lhe eu – por que não deixa este covil, este templo do ventre?
Ele deixou pender a sua bela cabeça de poeta. E disse-me a razão que o prende: disse-me, quase chorando nos meus braços, com o nó da gravata branca no cachaço: Korriscosso ama.
Ama uma Fanny, criada de todo o serviço em Charing-Cross. Ama-a desde o primeiro dia em que entrou no hotel: amou-a no momento em que a viu lavando as escadas de pedra, com os braços roliços nus, e os cabelos louros, os fatais cabelos louros, deste louro que entontece os meridionais, cabelos ricos, de um tom de cobre, dum tom de ouro-mate, torcendo-se numa trança de deusa. E depois a carnação, uma carnação de inglesa de Yorkshire – leite e rosas...
E o que Korriscosso tem sofrido! Toda a sua dor exala-a em odes – que passa a limpo ao domingo, dia de repouso e dia do Senhor! Leu-mas. E eu vi quanto a paixão pode perturbar um ser nervoso: que ferocidade de linguagem, que lances de desespero, que gritos de alma dilacerada arremessados dali, daqueles altos de Charing-Cross, para a mudez do céu frio! É que Korriscosso tem ciúmes. A desgraçada Fanny ignora aquele poeta a seu lado, aquele delicado, aquele sentimental, e ama um policeman. Ama um policeman, um colosso, um alcides, uma montanha de carne eriçada duma floresta de barbas, com o peito como o flanco de um couraçado, com pernas como fortalezas normandas. Este Polifemo, como diz Korriscosso, tem, ordinariamente, serviço no Strand; e a pobre Fanny passa o seu dia a espreitá-lo de um postigo, dos altos do hotel.
Todas as suas economias as gasta em quartilhos de gin, de brandy, de genebra, que à noite lhe leva em copinhos debaixo do avental; mantém-no fiel pelo álcool; o monstro, plantado enormemente a uma esquina, recebe em silêncio o copo, atira-o de um golpe às fauces tenebrosas, arrota cavamente, passa a mão cabeluda pela barba de hércules e segue taciturnamente, sem um obrigado, sem um amo-te, batendo o lajedo com a vastidão das suas solas sonoras. A pobre Fanny admira-o babosa... E talvez nesse momento, à outra esquina, o magro Korriscosso, fazendo no nevoeiro um esguio relevo de poste telegráfico, soluce com a face magra entre as mãos transparentes.
Pobre Korriscosso! Se ele ao menos a pudesse comover... Mas quê! Ela despreza-lhe o corpo de tísico triste; e a alma não lha compreende... Não que Fanny seja inacessível a sentimentos ardentes, expressos em linguagem melodiosa. Mas Korriscosso só pode escrever as suas elegias na sua língua materna... E Fanny não compreende grego... E Korriscosso é só um grande homem – em grego.
Quando desci ao meu quarto, deixei-o soluçando sobre o catre. Tenho-o visto depois, outras vezes, ao passar em Londres. Está mais magro, mais fatal, mais mirrado de zelos, mais curvado quando se move pelo restaurante com a travessa do rosbife, mais exaltado no seu lirismo... Sempre que ele me serve dou-lhe um xelim de gorjeta: e depois, ao retirar, aperto-lhe sinceramente a mão.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Um conto pequenino, mas cheio de significado

Última dose- José Mário Silva

São sete da tarde. Alberto está na sua área, perto da esquina, agitando o braço em semicírculo enquanto espera que algum automobilista se decida a estacionar naquele espaço apertado, entre um jipe e uma carrinha de caixa aberta. O dia não lhe correu de feição. Está ali desde a hora do almoço e ainda só lhe deram moedas de 50 cêntimos ou um euro. O pecúlio que tilinta no bolso do casaco nem dá para um bitoque e uma imperial, quanto mais para a dose de heroína que o seu corpo moído há muito reclama. Alberto tem frio e sabe que esta noite vai ressacar. De vez em quando adormece de pé, os olhos teimam em fechar-se, as mãos não param de tremer. E é então que ela aparece, a velhinha. A velhinha é baixinha, gordinha, coradinha, com um vestido às florzinhas que cheira a naftalina. Parece mesmo a minha avó, pensa Alberto. Arrumado o carro, começa com a cantilena do costume: “Ajude-me, é para uma sopa, tenho fome, estou doente, ajude-me por favor, tenha caridade.” Para seu espanto, a velha puxa logo da carteira e dá-lhe três notas de 50 euros. “Meu filho, toma lá isto ma solha que nunca mais te quero ver nesta vida que levas, ouviste?” Alberto nem quer acreditar: “Sim, sim, minha senhora, nunca mais me verá por aqui nestas tristes figuras, pode ficar descansada.” Dobra as notas e esconde-as dentro das meias, já a pensar na forma mais rápida de ir ter com o seu dealer. A velhinha fecha o carro e segue pela rua fora, como xaile negro pelos ombros. E só então Alberto repara num objeto estranho que ocupa os lugares traseiros do 2CV preto. Uma gadanha.
In Efeito borboleta e outras histórias