Outra cousa muito geral, que não
tanto me desedifica, quanto me lastima em muitos de vós é aquela tão notável
ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam para
estas partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado
e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água,
e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e fica preso e boqueando, até que,
assim suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior
ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano,
perder a vida?
Dir-me-eis que o mesmo fazem os
homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra outro exército, metem-se
os homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e porquê? Porque
houve quem os engodou e lhes fez isca com dois retalhos de pano. A vaidade
entre os vícios é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os
homens. E que faz a vaidade? Põe por isco na ponta desses piques, desses chuços
e dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco, que se chama hábito de
Malta, ou verde, que se chama de Avis. ou vermelho, que se chama de Cristo e de
Santiago; e os homens, por chegarem a passar esse retalho de pano ao peito, não
reparam em tragar e engolir o ferro. E depois que sucede? O mesmo que a vós. O
que engoliu o ferro, ou ali, ou noutra ocasião ficou morto; e os mesmos
retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros.
Por este exemplo vos concedo,
peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que não foi
este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque cá no Maranhão, ainda que
se derrame tanto sangue, não há exércitos, nem esta ambição de hábitos.
Mas nem por isso vos negarei que
também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano, menos honrada e mais
ignoradamente. Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê? Um
homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um mestre de navio de Portugal com
quatro varreduras das lojas, com quatro panos e quatro sedas, que já se lhes
passou a era e não têm gasto; e que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores
da nossa terra: dá-lhes uma sacadela e dá-lhes outra, com que cada vez lhes
sobe mais o preço; e os bonitos, ou os que querem parecer, todos esfaimados aos
trapos, e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano,
e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida. Isto não é encarecimento.
Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho, ou no
tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o levam os coches,
nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os
lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas nem as baixelas, nem as jóias; pois
em que se vai e despende toda a vida? No triste farrapo com que saem à rua, e
para isso se matam todo o ano.
Não
é isto, meus peixes, grande loucura dos homens com que vos escusais? Claro está
que sim; nem vós o podeis negar. (…)Vede o vosso Santo António, que pouco o
pode enganar o Mundo com essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as galas de
que aquela idade tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia
de cónego regrante; e depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda
era muito custosa aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia pela
corda. Com aquela corda e com aquele pano, pescou ele muitos, e só estes se não
enganaram e foram sisudos.
1.
Situa
o excerto na estrutura externa e interna do sermão.
2.
A
cegueira, equivalente à ignorância, é o grande defeito aqui apontado aos
peixes. Como é esse defeito exemplificado?
3.
“Dir-me-eis
que o mesmo fazem os homens. Não vo-lo nego.”
No segundo parágrafo, é feita uma
analogia com os homens. Explicita-a.
4.
No
mesmo parágrafo, é apontada a razão da cegueira dos homens. Qual é e como se
manifesta?
5.
“(…)
também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano, menos honrada e mais
ignorantemente.”
Interpreta e justifica a afirmação
transcrita.
Correção
1.
A nível da estrutura externa, este excerto situa-se no capítulo IV do Sermão de Santo António aos Peixes.
Quanto à estrutura interna, situa-se na Exposição.
2.
A cegueira dos peixes é exemplificada quando se verifica a facilidade com que
se deixam enganar por um pedaço de pano.
3.
Tal como os peixes, também os homens se deixam atrair por iscos enganadores: as
honrarias e distinções sociais.
4.
É a vaidade o “pescador mais astuto dos homens”, vício que os engana facilmente,
levando-os a arriscar e a perder as suas vidas, não por altruísmo ou causas
nobres, mas pela recompensa fútil.
5.
Os peixes são cegos, ignorantes, quando se deixam engodar e matar por um pedaço
de pano, que tomam por alimento. No entanto, os homens revelam ainda maior
ignorância e menos honradez, quando o que os move e os engoda é a aparência.
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