A CIVIDADE
O monte da Cividade
era um lugar muito antigo. Os romanos tinham lá um quartel que servia para
vigiar tudo em volta, e ainda se podiam ver restos das casernas e das
habitações deles. Apareciam também púcaros de barro quebrados e até pulseiras
de ouro. O monte estava ao lado da quinta de Cavaleiros e era como uma cabeça
que saía da terra, com os olhos fechados. Da aldeia de Corvos ele só parecia um
monte qualquer, e mais nada.
A aldeia de Corvos
ficava em frente da casa de Cavaleiros; era preciso atravessar um campo muito
maior do que um estádio de futebol para lá chegar. Era um campo onde dantes os
condes faziam justas para se treinarem para a guerra, e Falco dizia que ele
fora regado com sangue; por isso é que apareciam espigas vermelhas quando se
colhia o milho. Mas dizia isto para assustar Lourença; só que ela já estava
habituada.
Na aldeia de Corvos
havia muitos cães e todos eram ferozes. Os rapazes atiravam pedradas às portas
dos quinteiros, que eram as portas que serviam para passar os carros de bois, e
eles ladravam como doidos. Até era pena obrigá-los a desesperar-se daquela
maneira. Quem tinha os cães mais valentes era a senhora Maria Costa, uma
lavradeira rica. Tinha também três filhas e um filho do mais bonito que podia
haver. Lourença não se cansava de olhar para eles quando Emília a levava a casa
da senhora Maria Costa. Pareciam feitos de barro colorido e tinham cabelos aos
cachos, pretos. Até Marta os achou bonitos. E Marta só gostava de gente esbelta
e com ar cansado. A senhora Maria Costa era vaidosa, o que quase parecia
impossível com aquelas saias de roda e chinelos nos pés com solas de madeira.
Sentava-se nos banquinhos de pedra junto das janelas e olhava para os campos
com prazer e orgulho. Era tudo dela, o que se via dali. Lourença pensava que as
mulheres eram quem mandava; os maridos delas quase não apareciam.
Falco combinou com
Xerxes subirem ao monte da Cividade. Levavam batatas para assar e bacalhau cru.
Pensavam passar lá o dia inteiro a fazer explorações. Lourença teve inveja da
liberdade que eles tinham e quis ir também.
— Raparigas são um
empecilho. Se ela for eu não vou — disse Xerxes. Empurrou Lourença e ela caiu e
até se magoou. Falco não fez nada para a socorrer.
— Vais para outra vez
— foi tudo o que ele disse. Afastaram--se, e Lourença sentiu o coração apertado
ao ver que desapareciam sem se importarem mais com ela. Levavam no farnel
nozes verdes, de que ela gostava muito.
Apareceram só à
noite, e era de desesperar não contarem nada do que viram. Falco guardava
segredo de tudo; ou então esquecia-se depressa das suas aventuras. Tal e qual
tio António, que dera a volta ao mundo e nunca se lhe arrancava nada do que
gozara ou padecera. Pessoas assim não ajudavam os outros a viver.
Passados uns dias aconteceu
quase o que a mãe chamava «uma tragédia». Falco apanhou um tiro na cara, e os
chumbos miúdos ficaram lá metidos e foi preciso ir curar-se ao hospital. O pai
dessa vez veio buscá-lo, já de noite, Lourença estava deitada. Emília fez o
possível por esconder-lhe o desastre, mas ela percebeu que havia um movimento
desacostumado. Ninguém se importou com ela, e isso magoou-a. Quase lhe apeteceu
ter levado um tiro também; não na cara, isso era repugnante e nunca se sabia o
resultado. Podia perder o nariz, o que era humilhante. Pensava que Falco
perdia o nariz, e aquilo dava-lhe vontade de rir, apesar da pena que sentia por
ele. «O ridículo mata», dizia tio António. Lourença achava que aquilo, sim,
ela percebia.
Ficou sozinha na casa
de Cavaleiros. Caiu-lhe o primeiro dente e David ensinou-lhe a atirá-lo para o
telhado, para que lhe nascesse outro. Xerxes tinha desaparecido. Emilia contou
que ele fugira para a Cividade e que só apareceu quando a fome o obrigou. Mas
Lourença não o viu. Andava ocupada a ajudar Emília a fazer a marmelada, e
descascava marmelos com uma faquinha aguçada que servia também para tirar as
pevides. Emília encheu quatro tigelinhas de barro do tamanho dum tinteiro e
Lourença ia todos os dias pô-las ao sol a secar. As vespas fizeram-lhes buracos,
que até parecia impossível elas comerem tanto em tão poucas horas. Emília
tinha o cuidado de cobrir a marmelada com uma cortina velha de étamine. E
dizia:
— As ladras! As
bandidas! — Sacudia-as com o avental, e Lou-rença pensava se alguma vespa lhe
entrasse na cabeleira crespa nunca mais podia sair.
Começou a chover e o
gado agitava-se muito nos eidos, que era o lugar onde se recolhia. Sabiam
quando ia trovejar; a aldeia de Corvos ficava escura e a tempestade caía de
repente e trazia um pouco de terror, como uma novidade que o coração estima. A
caseira passava com as saias pela cabeça, gritando qualquer coisa, e o homem
dela estava à porta de casa, com um saco a fazer de capuz. Mas Xerxes não se
via em parte nenhuma. Lourença, que tinha ido com Emília ao celeiro, ficou à
espera que ela lhe trouxesse um guarda-chuva. Mas Emília demorava-se; tinha sempre
que fazer pelo caminho ou não sabia da chave da cozinha, ou encontrava alguém
que a desviava e se punha a conversar. Lourença esperou um tempo infinito, e
chovia tanto que a água estalava como chicotadas nas pedras. Foi então que ela
ouviu barulho e pensou nos condes de Cavaleiros, com armaduras de ferro, a
mexer-se lá para o lado das adegas. «Agora até me apetece vê-los» — pensou
Dentes de Rato. Quando sentia curiosidade tornava-se muito valente. Ninguém
podia imaginar do que era capaz nessas ocasiões. Desceu as escadas para a adega
e estava tão escuro que só se viam as teias de aranha brancas a balançar ao
vento que entrava pelas frestas. Continuava a ouvir o mesmo barulho, como se
alguém batesse no ferro com outro ferro. O barulho vinha das prisões dos
condes, que na verdade não passavam de antigas garrafeiras. Uma voz disse:
— Olha a Dentes de Rato! Arremalada, que fazes aqui? (...)
A Cividade
1.
Qual era
a utilidade do Monte da Cividade antigamente?
2.
Que tipo de descobertas se faziam aí?
3.
Explica a metáfora “regado com sangue” (2º
parágrafo).
4.
Explica a utilização do advérbio “até” na frase
“Até Marta os achou bonitos.”.
5.
Caracteriza a Sra. Maria Costa.
6.
Que comparação é feita por Lourença entre o
irmão Falco e o tio António?
7.
Explica em que consistiu a “tragédia”.
8.
Descreve,
por palavras tuas, as tempestades na aldeia de Corvos.
9.
Como foi que Lourença encontrou Xerxes?
Proposta de
correção
1.
No tempo dos romanos, o Monte da Cividade era
uma fortaleza, um posto de vigia e de defesa.
2.
Naquele monte encontravam-se púcaros de barro
quebrados e, por vezes, jóias como pulseiras de ouro.
3.
Esta metáfora é usada para realçar que nas batalhas
e treinos que se desenrolaram naquele campo muitos homens ficaram feridos ou morreram.
4.
O advérbio “até” é usado para realçar que Marta
tinha gostos muito requintados, isto é, para dizer que alguém era bonito tinha
de ser excecional.
5.
A Sra. Maria Costa era uma lavradeira rica que
tinha uns filhos anormalmente bonitos. Era vaidosa e orgulhosa das suas
propriedades.
6.
Lourença compara o irmão ao tio porque ambos
guardavam segredo das suas aventuras.
7.
A tragédia deu-se quando Falco levou um tiro na
cara e teve de ir ao hospital tirar os chumbos.
8.
Naquela
aldeia, as tempestades caíam de repente, escurecendo o céu e provocando algum
medo à população.
9.
Lourença tinha ido com Emília ao celeiro quando
começou a chover. Ficou à espera que a criada lhe trouxesse um guarda-chuva,
mas como esta se demorou, a menina, a certa altura, começou a ouvir um barulho
metálico vindo da adega e desceu para ir ver o que era. Foi aí que encontrou
Xerxes preso.
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