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Um homem foi bater à porta do rei e disse-lhe,
Dá-me um barco. A casa do rei tinha muitas mais portas, mas aquela era a das
petições. Como o rei passava todo o tempo sentado à porta dos obséquios
(entenda-se, os obséquios que lhe faziam a ele), de cada vez que ouvia alguém a
chamar à porta das petições fingia-se desentendido, e só quando o ressoar
contínuo da aldraba de bronze se tornava, mais do que notório, escandaloso,
tirando o sossego à vizinhança (as pessoas começavam a murmurar, Que rei temos
nós, que não atende), é que dava ordem ao primeiro-secretário para ir saber o
que queria o impetrante, que não havia maneira de se calar. Então, o
primeiro-secretário chamava o segundo-secretário, este chamava o terceiro, que
mandava o primeiro-ajudante, que por sua vez mandava o segundo, e assim por aí
fora até chegar à mulher da limpeza, a qual, não tendo ninguém em quem mandar,
entreabria a porta das petições e perguntava pela frincha, Que é que tu queres.
O suplicante dizia ao que vinha, isto é, pedia o que tinha a pedir, depois
instalava-se a um canto da porta, à espera de que o requerimento fizesse, de um
em um, o caminho ao contrário, até chegar ao rei. Ocupado como sempre estava com
os obséquios, o rei demorava a resposta, e já não era pequeno sinal de atenção
ao bem-estar e felicidade do seu povo quando resolvia pedir um parecer
fundamentado por escrito ao primeiro-secretário, o qual, escusado se ria dizer,
passava a encomenda ao segundo-secretário, este ao terceiro, sucessivamente, até
chegar outra vez à mulher da limpeza, que despachava sim ou não conforme
estivesse de maré.
Contudo, no caso do homem que queria um barco, as
coisas não se passaram bem assim. Quando a mulher da limpeza lhe perguntou pela
nesga da porta, Que é que tu queres, o homem, em lugar de pedir, como era o
costume de todos, um título, uma condecoração, ou simplesmente dinheiro,
respondeu, Quero falar ao rei, Já sabes que o rei não pode vir, está na porta
dos obséquios, respondeu a mulher, Pois então vai lá dizer-lhe que não saio
daqui até que ele venha, pessoalmente, saber o que quero, rematou o homem, e
deitou-se ao comprido no limiar, tapando-se com a manta por causa do frio.
Entrar e sair, só por cima dele. Ora, isto era um enorme problema, se tivermos
em consideração que, de acordo com a pragmática das portas, ali só se podia
atender um suplicante de cada vez, donde resultava que, enquanto houvesse alguém
à espera de resposta, nenhuma outra pessoa se poderia aproximar a fim de expor
as suas necessidades ou as suas ambições. À primeira vista, quem ficava a ganhar
com este artigo do regulamento era o rei, dado que, sendo menos numerosa a gente
que o vinha incomodar com lamúrias, mais tempo ele passava a ter, e mais
descanso, para receber, contemplar e guardar os obséquios. À segunda vista,
porém, o rei perdia, e muito, porque os protestos públicos, ao notar-se que a
resposta estava a tardar mais do que o justo, faziam aumentar gravemente o
descontentamento social, o que, por seu turno, ia ter imediatas e negativas
consequências no afluxo de obséquios. No caso que estamos narrando, o resultado
da ponderação entre os benefícios e os prejuízos foi ter ido o rei, ao cabo de
três dias, e em real pessoa, à porta das petições, para saber o que queria o
intrometido que se havia negado a encaminhar o requerimento pelas competentes
vias burocráticas. Abre a porta, disse o rei à mulher da limpeza, e ela
perguntou, Toda, ou só um bocadinho. O rei duvidou por um instante, na verdade
não gostava muito de se expor aos ares da rua, mas depois reflexionou que
pareceria mal, além de ser indigno da sua majestade, falar com um súdito através
de uma nesga, como se tivesse medo dele, mormente estando a assistir ao colóquio
a mulher da limpeza, que logo iria dizer por aí sabe Deus o quê, De par em par,
ordenou. O homem que queria um barco levantou-se do degrau da porta quando
começou a ouvir correr os ferrolhos, enrolou a manta e pôs-se à espera. Estes
sinais de que finalmente alguém vinha atender, e que portanto a praça não
tardaria a ficar desocupada, fizeram aproximar-se da porta uns quantos
aspirantes à liberalidade do trono que por ali andavam, prontos a assaltar o
lugar mal ele vagasse. O inopinado aparecimento do rei (nunca uma tal coisa
havia sucedido desde que ele andava de coroa na cabeça) causou uma surpresa
desmedida, não só aos ditos candidatos mas também à vizinhança que, atraída pelo
repentino alvoroço, assomara às janelas das casas, no outro lado da rua. A única
pessoa que não se surpreendeu por aí além foi o homem que tinha vindo pedir um
barco. Calculara ele, e acertara na previsão, que o rei, mesmo que demorasse
três dias, haveria de sentir-se curioso de ver a cara de quem, sem mais nem
menos, com notável atrevimento, o mandara chamar. Repartido pois entre a
curiosidade que não pudera reprimir e o desagrado de ver tanta gente junta, o
rei, com o pior dos modos, perguntou três perguntas seguidas, Que é que queres,
Por que foi que não disseste logo o que querias, Pensarás tu que eu não tenho
mais nada que fazer, mas o homem só respondeu à primeira pergunta, Dá-me um
barco, disse. O assombro deixou o rei a tal ponto desconcertado, que a mulher da
limpeza se apressou a chegar-lhe uma cadeira de palhinha, a mesma em que ela
própria se sentava quando precisava de trabalhar de linha e agulha, pois, além
da limpeza, tinha também à sua responsabilidade alguns, trabalhos menores de
costura no palácio como passajar as peúgas dos pajens. Mal sentado, porque a
cadeira de palhinha era muito mais baixa que o trono, o rei estava a procurar a
melhor maneira de acomodar as pernas, ora encolhendo-as ora estendendo-as para
os lados, enquanto o homem que queria um barco esperava com paciência a pergunta
que se seguiria, E tu para que queres um barco, pode-se saber, foi o que o rei
de facto perguntou quando finalmente se deu por instalado, com sofrível
comodidade, na cadeira da mulher da limpeza, Para ir à procura da ilha
desconhecida, respondeu o homem, Que ilha desconhecida, perguntou o rei
disfarçando o riso, como se tivesse na sua frente um louco varrido, dos que têm
a mania das navegações, a quem não seria bom contrariar logo de entrada, A ilha
desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já não há ilhas desconhecidas, Quem
foi que te disse, rei, que já não há ilhas desconhecidas, Estão todas nos mapas,
Nos mapas só estão as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida é essa de que
queres ir à procura, Se eu to pudesse dizer, então não seria desconhecida, A
quem ouviste tu falar dela, perguntou o rei, agora mais sério, A ninguém, Nesse
caso, por que teimas em dizer que ela existe, Simplesmente porque é impossível
que não exista uma ilha desconhecida, E vieste aqui para me pedires um barco,
Sim, vim aqui para pedir-te um barco, E tu quem és, para que eu to dê, E tu quem
és, para que não mo dês, Sou o rei deste reino, e os barcos do reino
pertencem-me todos, Mais lhes pertencerás tu a eles do que eles a ti, Que queres
dizer, perguntou o rei, inquieto, Que tu, sem eles, és nada, e que eles, sem ti,
poderão sempre navegar, Às minhas ordens, com os meus pilotos e os meus
marinheiros, Não te peço marinheiros nem piloto, só te peço um barco, E essa
ilha desconhecida, se a encontrares, será para mim, A ti, rei, só te interessam
as ilhas conhecidas, Também me interessam as desconhecidas quando deixam de o
ser, Talvez esta não se deixe conhecer, Então não te dou o barco, Darás. Ao
ouvirem esta palavra, pronunciada com tranquila firmeza, os aspirantes à porta
das petições, em quem, minuto após minuto, desde o princípio da conversa, a
impaciência vinha crescendo, e mais para se verem livres dele do que por
simpatia solidária, resolveram intervir a favor do homem que queria o barco,
começando a gritar, Dá-lhe o barco, dá-lhe o barco. O rei abriu a boca para
dizer à mulher da limpeza que chamasse a guarda do palácio a vir restabelecer
imediatamente a ordem pública e impor a disciplina, mas, nesse momento, as
vizinhas que assistiam das janelas juntaram-se ao coro com entusiasmo, gritando
como os outros, Dá-lhe o barco, dá-lhe o barco. Perante uma tão iniludível
manifestação da vontade popular e preocupado com o que, neste meio tempo, já
haveria perdido na porta dos obséquios, o rei levantou a mão direita a impor
silêncio e disse, Vou dar-te um barco, mas a tripulação terás de arranjá-la tu,
os meus marinheiros são-me precisos para as ilhas conhecidas. Os gritos de
aplauso do público não deixaram que se percebesse o agradecimento do homem que
viera pedir um barco, aliás o movimento dos lábios tanto teria podido ser
Obrigado, meu senhor, como Eu cá me arranjarei, mas o que distintamente se ouviu
foi o dito seguinte do rei, Vais à doca, perguntas lá pelo capitão do porto,
dizes-lhe que te mandei eu, e ele que te dê o barco, levas o meu cartão. O homem
que ia receber um barco leu o cartão de visita, onde dizia Rei por baixo do nome
do rei, e eram estas as palavras que ele havia escrito sobre o ombro da mulher
da limpeza, Entrega ao portador um barco, não precisa ser grande, mas que
navegue bem e seja seguro, não quero ter remorsos na consciência se as coisas
lhe correrem mal. Quando o homem levantou a cabeça, supõe-se que desta vez é que
iria agradecer a dádiva, já o rei se tinha retirado, só estava a mulher da
limpeza a olhar para ele com cara de caso. O homem desceu do degrau da porta,
sinal de que os outros candidatos podiam enfim avançar, nem valeria a pena
explicar que a confusão foi indescritível, todos a quererem chegar ao sítio em
primeiro lugar, mas com tão má sorte que a porta já estava fechada outra vez. A
aldraba de bronze tornou a chamar a mulher da limpeza, mas a mulher da limpeza
não está, deu a volta e saiu com o balde e a vassoura por outra porta, a das
decisões, que é raro ser usada, mas quando o é, é. Agora sim, agora pode-se
compreender o porquê da cara de caso com que a mulher da limpeza havia estado a
olhar, foi esse o preciso momento em que ela resolveu ir atrás do homem quando
ele se dirigisse ao porto a tomar conta do barco. Pensou ela que já bastava de
uma vida a limpar e a lavar palácios, que tinha chegado a hora de mudar de
ofício, que lavar e limpar barcos é que era a sua vocação verdadeira, no mar, ao
menos, a água nunca lhe faltaria. O homem nem sonha que, não tendo ainda sequer
começado a recrutar os tripulantes, já leva atrás de si a futura encarregada das
baldeações e outros asseios, também é deste modo que o destino costuma
comportar-se connosco, já está mesmo atrás de nós, já estendeu a mão para
tocar-nos o ombro, e nós ainda vamos a murmurar, Acabou-se, não há mais que ver,
é tudo igual.
Andando, andando, o homem chegou ao porto, foi à doca,
perguntou pelo capitão, e enquanto ele não chegava deitou-se a adivinhar qual
seria, de quantos barcos ali estavam, o que iria ser o seu, grande já se sabia
que não, o cartão de visita do rei era muito claro neste ponto, por conseguinte
ficavam de fora os paquetes, os cargueiros e os navios de guerra, tão-pouco
poderia ser ele tão pequeno que resistisse mal às forças do vento e aos rigores
do mar, o rei também havia sido categórico neste ponto, Que navegue bem e seja
seguro, foram estas as suas formais palavras, assim implicitamente excluindo os
botes, as faluas e os escaleres, os quais, sendo bons navegantes, e seguros,
conforme a condição de cada qual, não tinham nascido para sulcar os oceanos, que
é onde se encontram as ilhas desconhecidas. Um pouco afastada dali, escondida
por trás de uns bidões, a mulher da limpeza correu os olhos pelos barcos
atracados, Para o meu gosto, aquele, pensou, porém a sua opinião não contava,
nem sequer havia sido ainda contratada, vamos ouvir antes o que dirá o capitão
do porto. O capitão veio, leu o cartão, mirou o homem de alto a baixo, e fez a
pergunta que o rei se tinha esquecido de fazer, Sabes navegar, tens carta de
navegação, ao que o homem respondeu, Aprenderei no mar. O capitão disse, Não to
aconselharia, capitão sou eu, e não me atrevo com qualquer barco, Dá-me então um
com que possa atrever-me eu, não, um desses não, dá-me antes um barco que eu
respeite e que possa respeitar-me a mim, Essa linguagem é de marinheiro, mas tu
não és marinheiro, Se tenho a linguagem, é como se o fosse. O capitão tornou a
ler o cartão do rei, depois perguntou, Poderás dizer-me para que queres o barco,
Para ir à procura da ilha desconhecida, Já não há ilhas desconhecidas, O mesmo
me disse o rei, O que ele sabe de ilhas, aprendeu-o comigo, É estranho que tu,
sendo homem do mar, me digas isso, que já não há ilhas desconhecidas, homem da
terra sou eu, e não ignoro que todas as ilhas, mesmo as conhecidas, são
desconhecidas enquanto não desembarcarmos nelas, Mas tu, se bem entendi, vais à
procura de uma onde nunca ninguém tenha desembarcado, Sabê-lo-ei quando lá
chegar, Se chegares, Sim, às vezes naufraga-se pelo caminho, mas, se tal me
viesse a acontecer, deverias escrever nos anais do porto que o ponto a que
cheguei foi esse, Queres dizer que chegar, sempre se chega, Não serias quem és
se não o soubesses já. O capitão do porto disse, Vou dar-te a embarcação que te
convém, Qual é ela, É um barco com muita experiência, ainda do tempo em que toda
a gente andava à procura de ilhas desconhecidas, Qual é ele, Julgo até que
encontrou algumas, Qual, Aquele. Assim que a mulher da limpeza percebeu para
onde o capitão apontava, saiu a correr de detrás dos bidões e gritou, É o meu
barco, é o meu barco, há que perdoar-lhe a insólita reivindicação de
propriedade, a todos os títulos abusiva, o barco era aquele de que ela tinha
gostado, simplesmente. Parece uma caravela, disse o homem, Mais ou menos,
concordou o capitão, no princípio era uma caravela, depois passou por arranjos e
adaptações que a modificaram um bocado, Mas continua a ser uma caravela, Sim, no
conjunto conserva o antigo ar, E tem mastros e velas, Quando se vai procurar
ilhas desconhecidas, é o mais recomendável. A mulher da limpeza não se conteve,
Para mim não quero outro, Quem és tu, perguntou o homem, Não te lembras de mim,
Não tenho idéia, Sou a mulher da limpeza, Qual limpeza, A do palácio do rei, A
que abria a porta das petições, Não havia outra, E por que não estás tu no
palácio do rei a limpar e a abrir portas, Porque as portas que eu realmente
queria já foram abertas e porque de hoje em diante só limparei barcos, Então
estás decidida a ir comigo procurar a ilha desconhecida, Saí do palácio pela
porta das decisões, Sendo assim, vai para a caravela, vê como está aquilo,
depois do tempo que passou deve precisar de uma boa lavagem, e tem cuidado com
as gaivotas, que não são de fiar, Não queres vir comigo conhecer o teu barco por
dentro, Tu disseste que era teu, Desculpa, foi só porque gostei dele, Gostar é
provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar. O
capitão do porto interrompeu a conversa, Tenho de entregar as chaves ao dono do
barco, a um ou a outro, resolvam-se, a mim tanto se me dá, Os barcos têm chave,
perguntou o homem, Para entrar, não, mas lá estão as arrecadações e os paióis, e
a escrivaninha do comandante com o diário de bordo, Ela que se encarregue de
tudo, eu vou recrutar a tripulação, disse o homem, e afastou-se.
A mulher
da limpeza foi ao escritório do capitão para recolher as chaves, depois entrou
no barco, duas coisas lhe valeram aí, a vassoura do palácio e a prevenção contra
as gaivotas, ainda não tinha acabado de atravessar a prancha que ligava a
amurada ao cais e já as malvadas estavam a precipitar-se sobre ela aos guinchos,
furiosas, de goela aberta, como se ali mesmo a quisessem devorar. Não sabiam com
quem se metiam. A mulher da limpeza pousou o balde, meteu as chaves no seio,
firmou bem os pés na prancha, e, redemoinhando a vassoura como se fosse um
espadão dos tempos antigos, fez debandar o bando assassino. Foi só quando entrou
no barco que compreendeu a ira das gaivotas, havia ninhos por toda a parte,
muitos deles abandonados, outros ainda com ovos, e uns poucos com gaivotinhos de
bico aberto, à espera da comida, Pois sim, mas o melhor é mudarem-se daqui, um
barco que vai procurar a ilha desconhecida não pode ter este aspecto, como se
fosse um galinheiro, disse. Atirou para a água os ninhos vazios, quanto aos
outros deixou-os ficar, até ver. Depois arregaçou as mangas e pôs-se a lavar a
coberta. Quando acabou a dura tarefa, foi abrir o paiol das velas e procedeu a
um exame minucioso do estado das costuras, depois de tanto tempo sem irem ao mar
e sem terem de suportar os esticões saudáveis do vento. As velas são os músculos
do barco, basta ver como incham quando se esforçam, mas, e isso mesmo sucede aos
músculos, se não se lhes dá uso regularmente, abrandam, amolecem, perdem nervo,
E as costuras são como os nervos das velas, pensou a mulher da limpeza, contente
por estar a aprender tão depressa a arte de marinharia. Achou esgarçadas algumas
bainhas, mas contentou-se com assinalá-las, uma vez que para este trabalho não
podiam servir a linha e a agulha com que passajava as peúgas dos pajens
antigamente, quer dizer, ainda ontem. Quanto aos outros paióis, viu logo que
estavam vazios. Que o da pólvora estivesse desmunido, salvo uns pozinhos negros
no fundo, que primeiro mais lhe pareceram caganitas de rato, não lhe importou
nada, de facto não está escrito em nenhuma lei, pelo menos até onde a sabedoria
duma mulher da limpeza é capaz de alcançar, que ir em busca duma ilha
desconhecida tenha de ser forçosamente uma empresa de guerra. Já a ralou, e
muito, a falta absoluta de munições de boca no paiol respectivo, não por si
própria, que estava mais do que acostumada ao mau passadio do palácio, mas por
causa do homem a quem deram este barco, não tarda que o sol se ponha, e ele a
aparecer-me aí a clamar que tem fome, que é o dito de todos os homens mal entram
em casa, como se só eles é que tivessem estômago e sofressem da necessidade de o
encher, E se já traz marinheiros para a tripulação, que são uns ogres a comer,
então é que não sei como nos iremos governar, disse a mulher da
limpeza.
Não valia a pena ter-se preocupado tanto. O sol havia acabado de
sumir-se no oceano quando o homem que tinha um barco surgiu no extremo do cais.
Trazia um embrulho na mão, porém vinha sozinho e cabisbaixo. A mulher da limpeza
foi esperá-lo à prancha, mas antes que ela abrisse a boca para se inteirar de
como lhe tinha corrido o resto do dia, ele disse, Está descansada, trago aqui
comida para os dois, E os marinheiros, perguntou ela, Não veio nenhum, como
podes ver, Mas deixaste-os apalavrados, ao menos, tornou ela a perguntar,
Disseram-me que já não há ilhas desconhecidas, e que, mesmo que as houvesse, não
iriam eles tirar-se do sossego dos seus lares e da boa vida dos barcos de
carreira para se meterem em aventuras oceânicas, à procura de um impossível,
como se ainda estivéssemos no tempo do mar tenebroso, E tu, que lhes
respondeste, Que o mar é sempre tenebroso, E não lhes falaste da ilha
desconhecida, Como poderia falar-lhes eu duma ilha desconhecida, se não a
conheço, Mas tens a certeza de que ela existe, Tanta como a de ser tenebroso o
mar, Neste momento, visto daqui, com aquela água cor de jade e o céu como um
incêndio, de tenebroso não lhe encontro nada, É uma ilusão tua, também as ilhas
às vezes parece que flutuam sobre as águas, e não é verdade, Que pensas fazer,
se te falta a tripulação, Ainda não sei, Podíamos ficar a viver aqui, eu
oferecia-me para lavar os barcos que vêm à doca, e tu, E eu, Tens com certeza um
mester, um ofício, uma profissão, como agora se diz, Tenho, tive, terei se for
preciso, mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando
nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és, O
filósofo do rei, quando não tinha que fazer, ia sentar-se ao pé de mim, a ver-me
passajar as peúgas dos pajens, e às vezes dava-lhe para filosofar, dizia que
todo o homem é uma ilha, eu, como aquilo não era comigo, visto que sou mulher,
não lhe dava importância, tu que achas, Que é necessário sair da ilha para ver a
ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós, Se não saímos de nós próprios,
queres tu dizer, Não é a mesma coisa. O incêndio do céu ia esmorecendo, a água
arroxeou-se de repente, agora nem a mulher da limpeza duvidaria de que o mar é
mesmo tenebroso, pelo menos a certas horas. Disse o homem, Deixemos as
filosofias para o filósofo do rei, que para isso é que lhe pagam, agora vamos
nós comer, mas a mulher não esteve de acordo, Primeiro, tens de ver o teu barco,
só o conheces por fora, Que tal o encontraste, Há algumas bainhas das velas que
estão a precisar de reforço, Desceste ao porão, encontraste água aberta, No
fundo vê-se alguma, de mistura com o lastro, mas isso parece que é próprio, faz
bem ao barco, Como foi que aprendeste essas coisas, Assim, Assim como, Como tu,
quando disseste ao capitão do porto que aprenderias a navegar no mar, Ainda não
estamos no mar, Mas já estamos na água, Sempre tive a idéia de que para a
navegação só há dois mestres verdadeiros, um que é o mar, o outro que é o barco,
E o céu, estás a esquecer-te do céu, Sim, claro, o céu, Os ventos, As nuvens, O
céu, Sim, o céu.
Em menos de um quarto de hora tinham acabado a volta
pelo barco, uma caravela, mesmo transformada, não dá para grandes passeios. É
bonita, disse o homem, mas se eu não conseguir arranjar tripulantes suficientes
para a manobra, terei de ir dizer ao rei que já não a quero, Perdes o ânimo logo
à primeira contrariedade, A primeira contrariedade foi estar à espera do rei
três dias, e não desisti, Se não encontrares marinheiros que queiram vir, cá nos
arranjaremos os dois, Estás doida, duas pessoas sozinhas não seriam capazes de
governar um barco destes, eu teria de estar sempre ao leme, e tu, nem vale a
pena estar a explicar-te, é uma loucura, Depois veremos, agora vamos mas é
comer. Subiram para o castelo de popa, o homem ainda a protestar contra o que
chamara loucura, e, ali, a mulher da limpeza abriu o farnel que ele tinha
trazido, um pão, queijo duro, de cabra, azeitonas, uma garrafa de vinho. A lua
já estava meio palmo sobre o mar, as sombras da verga e do mastro grande vieram
deitar-se-lhes aos pés. É realmente bonita a nossa caravela, disse a mulher, e
emendou logo, A tua, a tua caravela, Desconfio que não o será por muito tempo,
Navegues ou não navegues com ela, é tua, deu-ta o rei, Pedi-lha para ir procurar
uma ilha desconhecida, Mas estas coisas não se fazem do pé para a mão, levam o
seu tempo, já o meu avô dizia que quem vai ao mar avia-se em terra, e mais não
era ele marinheiro, Sem tripulantes não poderemos navegar, Já o tinhas dito, E
há que abastecer o barco das mil coisas necessárias a uma viagem como esta, que
não se sabe aonde nos levará, Evidentemente, e depois teremos de esperar que
seja a boa estação, e sair com a boa maré, e vir gente ao cais a desejar-nos boa
viagem, Estás a rir-te de mim, Nunca me riria de quem me fez sair pela porta das
decisões, Desculpa-me, E não tornarei a passar por ela, suceda o que suceder. O
luar iluminava em cheio a cara da mulher da limpeza, É bonita, realmente é
bonita, pensou o homem, que desta vez não estava a referir-se à caravela. A
mulher, essa, não pensou nada, devia ter pensado tudo durante aqueles três dias,
quando entreabria de vez em quando a porta para ver se aquele ainda continuava
lá fora, à espera. Não sobrou migalha de pão ou de queijo, nem gota de vinho, os
caroços das azeitonas foram atirados para a água, o chão está tão limpo como
ficara quando a mulher da limpeza lhe passou por cima o último esfregão. A
sereia de um paquete que saía para o mar soltou um ronco potente, como deviam
ter sido os do leviatã, e a mulher disse, Quando for a nossa vez faremos menos
barulho. Apesar de estarem no interior da doca, a água ondulou um pouco à
passagem do paquete, e o homem disse, Mas baloiçaremos muito mais. Riram os
dois, depois ficaram calados, passado um bocado um deles opinou que o melhor
seria irem dormir, Não é que eu tenha muito sono, e o outro concordou, Nem eu,
depois calaram-se outra vez, a lua subiu e continuou a subir, em certa altura a
mulher disse, Há beliches lá em baixo, o homem disse, Sim, e foi então que se
levantaram, que desceram à coberta, aí a mulher disse, Até amanhã, eu vou para
este lado, e o homem respondeu, E eu vou para este, até amanhã, não disseram
bombordo nem estibordo, decerto por estarem ainda a praticar na arte. A mulher
voltou atrás, Tinha-me esquecido, tirou do bolso do avental dois cotos de vela,
Encontrei-os quando andava a limpar, o que não tenho é fósforos, Eu tenho, disse
o homem. Ela segurou as velas, uma em cada mão, ele acendeu um fósforo, depois,
abrigando a chama sob a cúpula dos dedos curvados, levou-a com todo o cuidado
aos velhos pavios, a luz pegou, cresceu lentamente como faz o luar, banhou a
cara da mulher da limpeza, nem seria preciso dizer o que ele pensou, É bonita,
mas o que ela pensou, sim, Vê-se bem que só tem olhos para a ilha desconhecida,
aqui está como as pessoas se enganam nos sentidos do olhar, sobretudo ao
princípio. Ela entregou-lhe uma vela, disse, Até amanhã, dorme bem, ele quis
dizer o mesmo doutra maneira, Que tenhas sonhos felizes, foi a frase que lhe
saiu, daqui a pouco, quando lá estiver em baixo, deitado no seu beliche,
vir-lhe-ão à ideia outras frases, mais espirituosas, sobretudo mais insinuantes,
como se espera que sejam as de um homem quando está a sós com uma mulher.
Perguntava-se se já dormiria, se teria tardado a entrar no sono, depois imaginou
que andava à procura dela e não a encontrava em nenhum sítio, que estavam
perdidos os dois num barco enorme, o sonho é um prestidigitador hábil, muda as
proporções das coisas e as suas distâncias, separa ás pessoas, e elas estão
juntas, reúne-as, e quase não se vêem uma à outra, a mulher dorme a poucos
metros e ele não soube como alcançá-la, quando é tão fácil ir de bombordo a
estibordo.
Tinha-lhe desejado felizes sonhos, mas foi ele quem levou toda
a noite a sonhar. Sonhou que a sua caravela ia no mar alto, com as três velas
triangulares gloriosamente enfunadas, abrindo caminho sobre as ondas, enquanto
ele manejava a roda do leme e a tripulação descansava à sombra. Não percebia
como podiam ali estar os marinheiros que no porto e na cidade se tinham recusado
a embarcar com ele para ir à procura da ilha desconhecida, provavelmente
arrependeram-se da grosseira ironia com que o haviam tratado. Via animais
espalhados pela coberta, patos, coelhos, galinhas, o habitual da criação
doméstica, debicando os grãos de milho ou roendo as folhas de couve que um
marinheiro lhes atirava, não se lembrava de quando os tinha trazido para o
barco, fosse como fosse era natural que ali estivessem, imaginemos que a ilha
desconhecida é, como tantas vezes o foi no passado, uma ilha deserta, o melhor
será jogar pelo seguro, todos sabemos que abrir a porta da coelheira e agarrar
um coelho pelas orelhas sempre foi mais fácil do que persegui-lo por montes e
vales. Do fundo do porão veio agora um coro de relinchos de cavalos, de mugidos
de bois, de zurros de asnos, as vozes dos nobres animais necessários para o
trabalho pesado, e como foi que vieram eles, como podem estar numa caravela onde
a tripulação humana mal cabe, de súbito o vento deu uma guinada, a vela maior
bateu e ondulou, por trás dela estava o que antes não se vira, um grupo de
mulheres que mesmo sem as contar se adivinha serem tantas quantos os
marinheiros, ocupam-se nas suas coisas de mulheres, ainda não chegou o tempo de
se ocuparem doutras, está claro que isto só pode ser um sonho, na vida real
nunca se viajou assim. O homem do leme buscou com os olhos a mulher da limpeza e
não a viu, Talvez esteja no beliche de estibordo, a descansar da lavagem da
coberta, pensou, mas foi um pensar fingido, porque ele bem sabe, embora também
não saiba como o sabe, que ela à última hora não quis vir, que saltou para o
cais, dizendo de lá, Adeus, adeus, já que só tens olhos para a ilha
desconhecida, vou-me embora, e não era verdade, agora mesmo andam os olhos dele
a procurá-la e não a encontram. Neste momento o céu cobriu-se e começou a
chover, e, tendo chovido, principiaram a brotar inúmeras plantas das fileiras de
sacos de terra alinhadas ao longo da amurada, não estão ali porque se suspeite
que não haja terra bastante na ilha desconhecida, mas porque assim se ganhará
tempo, no dia em que lá chegarmos só teremos que transplantar as árvores de
fruto, semear os grãos das pequenas searas que vão amadurecer aqui, enfeitar os
canteiros com as flores que desabrocharão destes botões. O homem do leme
pergunta aos marinheiros que descansam na coberta se avistam alguma ilha
desabitada, e eles respondem que não vêem nem de umas nem das outras, mas que
estão a pensar em desembarcar na primeira terra povoada que lhes apareça, desde
que haja lá um porto onde fundear, uma taberna onde beber e uma cama onde
folgar, que aqui não se pode, com toda esta gente junta. E a ilha desconhecida,
perguntou o homem do leme, A ilha desconhecida é coisa que não existe, não passa
duma ideia da tua cabeça, os geógrafos do rei foram ver nos mapas e declararam
que ilhas por conhecer é coisa que se acabou desde há muito tempo, Devíeis ter
ficado na cidade, em lugar de vir atrapalhar-me a navegação, Andávamos à procura
de um sítio melhor para viver e resolvemos aproveitar a tua viagem, Não sois
marinheiros, Nunca o fomos, Sozinho, não serei capaz de governar o barco,
Pensasses nisso antes de ir pedi-lo ao rei, o mar não ensina a navegar. Então o
homem do leme viu uma terra ao longe e quis passar adiante, fazer de conta que
ela era a miragem de uma outra terra, uma imagem que tivesse vindo do outro lado
do mundo pelo espaço, mas os homens que nunca haviam sido marinheiros
protestaram, disseram que ali mesmo é que queriam desembarcar, Esta é uma ilha
do mapa, gritaram, matar-te-emos se não nos levares lá. Então, por si mesma, a
caravela virou a proa em direcção à terra, entrou no porto e foi encostar à
muralha da doca, Podeis ir-vos, disse o homem do leme, acto contínuo saíram em
correnteza, primeiro as mulheres, depois os homens, mas não foram sozinhos,
levaram com eles os patos, os coelhos e as galinhas, levaram os bois, os burros
e os cavalos, e até as gaivotas, uma após outra, levantaram voo e se foram do
barco transportando no bico os seus gaivotinhos, proeza que não tinha sido
cometida antes, mas há sempre uma vez. O homem do leme assistiu à debandada em
silêncio, não fez nada para reter os que o abandonavam, ao menos tinham-no
deixado com as árvores, os trigos e as flores, com as trepadeiras que se
enrolavam nos mastros e pendiam da amurada como festões. Por causa do atropelo
da saída haviam-se rompido e derramado os sacos de terra, de modo que a coberta
era toda ela como um campo lavrado e semeado, só falta que venha um pouco mais
de chuva para que seja um bom ano agrícola. Desde que a viagem à ilha
desconhecida começou que não se vê o homem do leme comer, deve ser porque está a
sonhar, apenas a sonhar, e se no sonho lhe apetecesse um pedaço de pão ou uma
maçã, seria um puro invento, nada mais. As raízes das árvores já estão
penetrando no cavername, não tarda que estas velas içadas deixem de ser
precisas, bastará que o vento sopre nas copas e vá encaminhando a caravela ao
seu destino. É uma floresta que navega e se balanceia sobre as ondas, uma
floresta onde, sem saber-se como, começaram a cantar pássaros, deviam estar
escondidos por aí e de repente decidiram sair à luz, talvez porque a seara já
esteja madura e é preciso ceifá-la. Então o homem trancou a roda do leme e
desceu ao campo com a foice na mão, e foi quando tinha cortado as primeiras
espigas que viu uma sombra ao lado da sua sombra. Acordou abraçado à mulher da
limpeza, e ela a ele, confundidos os corpos, confundidos os beliches, que não se
sabe se este é o de bombordo ou o de estibordo. Depois, mal o sol acabou de
nascer, o homem e a mulher foram pintar na proa do barco, de um lado e do outro,
em letras brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do
meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si
mesma.