Mostrar aos alunos o vídeo abaixo e, depois de lerem o conto "Vicente", discutir sobre as semelhanças e as diferenças que existem entre as duas histórias:
http://www.youtube.com/watch?v=6wojN816rec :
Vicente
Naquela tarde, à hora em que o céu se
mostrava mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu.
Quarenta dias eram já decorridos desde que, integrado na leva dos escolhidos,
dera entrada na Arca. Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu
espírito não havia paz. Calado e carrancudo, andava de cá para lá numa agitação
contínua, como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse um
ultraje à criação. Em semelhante balbúrdia - lobos e cordeiros irmanados no
mesmo destino -, apenas a sua figura negra e seca se mantinha inconformada com
o procedimento de Deus. Numa indignação silenciosa, perguntava: - a que
propósito estavam os animais metidos na confusa questão da torre de Babel? Que
tinham que ver os bichos com as fornicações dos homens, que o Criador queria
punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que determinavam aquele dilúvio
batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível repulsa. E, quanto
mais inexorável se mostrava a prepotência, mais crescia a revolta de Vicente.
Quarenta dias, porém, a carne fraca o
prendeu ali. Nem mesmo ele poderia dizer como descera do Líbano para o cais de
embarque e, depois, na Arca, por tanto tempo recebera das mãos servis de Noé a
ração quotidiana. Mas pudera vencer-se. Conseguira, enfim, superar o instinto
da própria conservação, e abrir as asas de encontro à imensidão terrível do
mar.
A insólita partida foi presenciada por
grandes e pequenos num respeito calado e contido. Pasmados e deslumbrados,
viram-no, temerário, de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo com
que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço. Mas
ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal
libertação. A consciência em protesto activo contra o arbítrio que dividia os
seres em eleitos e condenados.
Mas ainda no íntimo de todos aquele
sabor de resgate, e já do alto, larga como um trovão, penetrante como um raio,
terrível, a voz de Deus:
- Noé, onde está o meu servo Vicente?
Bípedes e quadrúpedes ficaram
petrificados. Sobre o tombadilho varrido de ilusões, desceu, pesada, uma
mortalha de silêncio.
Novamente o Senhor paralisara as
consciências e o instinto, e reduzia a uma pura passividade vegetativa o
resíduo da matéria palpitante.
Noé, porém, era homem. E, como tal,
aprestou as armas de defesa.
- Deve andar por aí... Vicente! Vicente!
Que é do Vicente?!... Nada.
- Vicente!... Ninguém o viu?
Procurem-no!
Nem uma resposta. A criação inteira
parecia muda.
- Vicente! Vicente!. Em que sítio é que
ele se meteu?
Até que alguém, compadecido da mísera
pequenez daquela natureza, pôs fim à comédia.
- Vicente fugiu...
- Fugiu?! Fugiu como?
- Fugiu... Voou...
Bagadas de suor frio alagaram as
têmporas do desgraçado. De repente, bambearam-lhe as pernas e caiu redondo no
chão.
Na luz pardacenta do céu houve um
eclipse momentâneo. Pelas mãos invisíveis de quem comandava as fúrias, como que
passou, rápido, um estremecimento de hesitação.
Mas a divina autoridade não podia
continuar assim, indecisa, titubeante, à mercê da primeira subversão. O
instante de perplexidade durou apenas um instante. Porque logo a voz de Deus
ribombou de novo pelo céu imenso, numa severidade tonitruante.
- Noé, onde está o meu servo Vicente?
Acordado do desmaio poltrão, trémulo e
confuso, Noé tentou justificar-se.
- Senhor, o teu servo Vicente evadiu-se.
A mim não me pesa a consciência de o ter ofendido, ou de lhe haver negado a
ração devida. Ninguém o maltratou aqui. Foi a sua pura insubmissão que o
levou... Mas perdoa-lhe, e perdoa-me também a mim... E salva-o, que, como tu
mandaste, só o guardei a ele...
- Noé!... Noé!....
E a palavra de Deus, medonha, toou de
novo pelo deserto infinito do firmamento. Depois, seguiu-se um silêncio mais
terrível ainda. E, no vácuo em que tudo parecia mergulhado, ouvia-se, infantil,
o choro desesperado do Patriarca, que tinha então seiscentos anos de idade.
Entretanto, suavemente, a Arca ia
virando de rumo. E a seguir, como que guiada por um piloto encoberto, como que
movida por uma força misteriosa, apressada e firme - ela que até ali vogara
indecisa e morosa ao sabor das ondas -, dirigiu-se para o sítio onde quarenta
dias antes eram os montes da Arménia.
Na consciência de todos a mesma angústia
e a mesma interrogação. A que represálias recorreria agora o Senhor? Qual seria
o fim daquela rebelião?
Horas e horas a Arca navegou assim,
carregada de incertezas e terror. Iria Deus obrigar o corvo a regressar à
barca? Iria sacrificá-lo, pura e simplesmente, para exemplo? Ou que iria fazer?
E teria Vicente resistido à fúria do vendaval, à escuridão da noite e ao
dilúvio sem fim? E, se vencera tudo, a que paragens arribara? Em que sítio do
universo havia ainda um retalho de esperança?
Ninguém dava resposta às próprias
perguntas. Os olhos cravavam-se na distância, os corações apertavam-se num
sentimento de revolta impotente, e o tempo passava.
Subitamente, um lince de visão mais
penetrante viu terra. A palavra, gritada a medo, por parecer ou miragem ou
blasfémia, correu a Arca de lês a lês como um perfume. E toda aquela fauna
desiludida e humilhada subiu acima, ao convés, no alvoroço grato e alentador de
haver ainda chão firme neste pobre universo.
Terra! Nem planaltos, nem veigas, nem
desertos. Nem mesmo a macicez tranquilizadora dum monte. Apenas a crista de um
cerro a emergir das vagas. Mas bastava. Para quantos o viam, o pequeno penhasco
resumia a grandeza do mundo. Encarnava a própria realidade deles, até ali
transfigurados em meros fantasmas flutuantes. Terra! Uma minúscula ilha de
solidez no meio dum abismo movediço, e nada mais importava e tinha sentido.
Terra! Desgraçadamente, a doçura do nome
trazia em si um travor. Terra... Sim, existia ainda o ventre quente da mãe. Mas
o filho? Mas Vicente, o legítimo fruto daquele seio?
Vicente, porém, vivia. À medida que a
barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia,
recortada no horizonte, linha severa que limitava um corpo, e era ao mesmo
tempo um perfil de vontade.
Chegara! Conseguira vencer! E todos
sentiram na alma a paz da humilhação vingada.
Simplesmente, as águas cresciam sempre,
e o pequeno outeiro, de segundo a segundo, ia diminuindo.
Terra! Mas uma porção de tal modo
exígua, que até os mais confiados a fixavam ansiosamente, como a defendê-la da
voragem. A defendê-la e a defender Vicente, cuja sorte se ligara inteiramente
ao telúrico destino.
Ah, mas estavam «rotas as fontes do
grande abismo e abertas as cataratas do céu»! E homens e animais, começaram a
desesperar diante daquele submergir irremediável do último reduto da existência
activa. Não, ninguém podia lutar contra a determinação de Deus. Era impossível
resistir ao ímpeto dos elementos, comandados pela sua implacável tirania.
Transida, a turba sem fé fitava o
reduzido cume e o corvo pousado em cima. Palmo a palmo, o cabeço fora devorado.
Restava dele apenas o topo, sobre o qual, negro, sereno, único representante do
que era raiz plantada no seu justo meio, impávido, permanecia Vicente. Como um
espectador impessoal, seguia a Arca que vinha subindo com a maré. Escolhera a
liberdade, e aceitara desde esse momento todas as consequências da opção.
Olhava a barca, sim, mas para encarar de frente a degradação que recusara.
Noé e o resto dos animais assistiam
mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito claro ou brumoso de cada
um, este dilema, apenas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente, e o
Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco - a total autonomia da
criatura em relação ao criador -, ou, submerso o ponto de apoio, morria
Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema. A significação da
vida ligara-se indissoluvelmente ao acto de insubordinação. Porque ninguém mais
dentro da Arca se sentia vivo. Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele
corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na
derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.
Três vezes uma onda alta, num arranco de
fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração
frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de
terror. A morte temia a morte.
Mas em breve se tornou evidente que o
Senhor ia ceder. Que nada podia contra aquela vontade inabalável de ser livre.
Que, para salvar a sua própria obra,
fechava, melancolicamente, as comportas do céu.
Miguel Torga, Os Bichos
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